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O Princípio do Estado - Mikail Bakunin*


* Anarquista russo. Participou da revolução de 1848 na França. Em 1868 funda a Aliança da Democracia Socialista, e a seguir ingressa na Associação Internacional de Trabalhadores, conhecida também como Primeira Internacional, de onde os anarquistas foram expulsos em 1872 como resultado do confronto entre Bakunin e Marx. Morre na Suiça, aos 62 anos, em 1876.

No fundo, a conquista não é só a origem, mas também é o fim supremo de todos os Estados, grandes ou pequenos, poderosos ou fracos, despóticos ou liberais, monárquicos ou aristocráticos, democráticos e socialistas também, supondo que o ideal dos socialistas alemães, o de um grande Estado comunista, seja realizado algum dia.

Que a conquista foi o ponto de partida de todos os Estados, antigos e modernos, isso não poderá ser questionado por ninguém, já que cada página da história universal assim o prova suficientemente. Ninguém negará também que os grandes Estados atuais têm por objeto, mais ou menos confesso, a conquista. Mas os Estados médios, e sobretudo os pequenos, será dito, não pensam mais do que em se defender, e seria ridículo de sua parte sonhar com a conquista.

O quanto ridículo que se quiser, mas, entretanto, é o sonho desses Estados, como o sonho do menor camponês proprietário é arredondar suas terras em detrimento dovizinho. Arredondar, crescer, conquistar a qualquer preço e sempre, é uma tendência fatalmente inerente a todo Estado, qualquer que seja sua extensão, sua debilidade ou sua força, porque é uma necessidade de sua natureza. O que é o Estado senão a organização do poder? Está na natureza de todo poder a impossibilidade de suportar um superior ou um igual, pois o poder não tem outro objeto além da dominação, e a dominação só é real quando está submetido a ela tudo o que a obstaculiza. Nenhum poder tolera outro a não ser quando está obrigado a fazê-lo, isto é, quando se sente impotente para destruí-lo ou derrubálo.

O simples fato de um poder igual é uma negação de seu princípio e uma ameaça perpétua contra sua existência, porque é uma manifestação e uma prova de sua impotência.

Por conseguinte, entre todos os Estados que existem um ao lado do outro, a guerra é permanente e a paz tão só uma trégua.

Está na natureza do Estado se apresentar, tanto em relação a si mesmo como frente a seus súditos, como o objeto absoluto. Servir a sua prosperidade, a sua grandeza e a seu poder, essa é a virtude suprema do patriotismo. O Estado não reconhece outra virtude. Tudo o que lhe serve é bom e tudo o que é contrário a seus interesses é declarado criminoso. Tal é a moral dos Estados.

Por isso, a moral política foi sempre em todo momento, não só estranha, mas absolutamente contrária à moral humana. Essa contradição é uma conseqüência forçada de seu princípio: sendo o Estado uma parte, coloca-se e se impõe como o todo, ignora o direito de quanto, não sendo ele, encontra-se fora dele, e quando pode, sem perigo, o violenta. O Estado é a negação da humanidade.

Existem um direito humano e uma moral humana absolutos? Na atualidade, e vendo o que acontece e se faz na Europa hoje, somos forçados a nos colocar essa pergunta.

Primeiramente: existe o absoluto, e não é tudo relativo neste mundo? A respeito da moral e do direito, o que se chamava ontem direito não o é mais hoje, e o que parece moral na China pode não ser considerado tal na Europa. Desse ponto de vista, cada país, cada época, só deveriam ser julgados do ponto de vista das opiniões contemporâneas e locais, e então não haveria nem direito humano universal nem moral humana absoluta.

Desse modo, depois de ter sonhado uma coisa e outra, depois de termos sido metafísicos ou cristãos, hoje positivistas, deveríamos renunciar a esse sonho magnífico para voltar a cair nas estreitezas morais da Antigüidade, que ignoram inclusive o nome da humanidade, até o ponto de que todos os deuses foram deuses exclusivamente nacionais e acessíveis só aos cultos privilegiados. Mas hoje, que o céu tornou-se um deserto e que todos os deuses, inclusive, naturalmente, o Jeová dos judeus, encontram-se destronados, hoje isso seria ainda pouco: voltaríamos a cair no materialismo crasso e brutal de Bismarck, de Thiers e de Frederico II, segundo os quais Deus está sempre do lado dos grandes batalhões, como disse excelentemente o último. O único objeto digno de culto, o princípio de toda moral, de todo direito, seria a força; essa é a verdadeira religião do Estado.

Nada disso! Por mais ateus que sejamos, e precisamente porque somos ateus, reconhecemos uma moral humana e um direito humano absolutos. Só que se trata de entender a significação dessa palavra, absoluto.

O absoluto universal, que contempla a totalidade infinita dos mundos e dos seres, não o concebemos, porque não só somos incapazes de percebê-lo com nossos sentidos, como também não podemos sequer imaginá-lo.

Toda tentativa desse gênero nos levaria de novo ao vazio, tão amado dos metafísicos, da abstração absoluta.

O absoluto de que falamos é um absoluto muito relativo, e em particular relativo exclusivamente para a espécie humana. Ela está longe de ser eterna: nascida sobre a terra, morrerá com ela, talvez antes dela, deixando o lugar, segundo o sistema de Darwin, para uma espécie mais poderosa, mais completa e mais perfeita.

Mas enquanto existe, tem um princípio que lhe é inerente, e que faz que seja precisamente o que é: é esse princípio o que constitui, em relação a ela, o absoluto.

Vejamos qual é esse princípio.

De todos os seres vivos sobre esta terra, o homem é ao mesmo tempo o mais social e o mais individualista. É, sem contradição, também o mais inteligente. Há, talvez, animais que são mais sociais do que ele, por exemplo as abelhas ou as formigas; mas, ao contrário, são tão pouco individualistas que os indivíduos que pertencem a essas espécies estão absolutamente absorvidos por elas, e como que aniquilados em sua sociedade; são tudo para a coletividade e nada, ou quase nada, para si próprios. Parece que existe uma lei natural, segundo a qual quanto mais elevada é uma espécie de animais na escala dos seres, por sua organização mais completa, tanto mais latitude, liberdade e individualidade deixa a cada um. Os animais ferozes, que ocupam incontestavelmente a hierarquia mais elevada, são individualistas em grau supremo.

O homem, animal feroz por excelência, é o mais individualista de todos. Mas, ao mesmo tempo, e este é um de seus traços distintivos, é eminente, instintiva e fatalmente socialista. Isto é de tal modo certo que inclusive sua inteligência, que o torna tão superior a todos os seres vivos e que o constitui, de certa maneira, no amo de todos, só pode se desenvolver e chegar à consciência de si mesma em sociedade, e pelo concurso de toda a coletividade.

E, de fato, sabemos bem que é impossível pensar sem palavras: à margem ou antes da palavra pôde muito bem haver representações ou imagens das coisas, mas não houve pensamentos. O pensamento vive e se desenvolve somente com a palavra. Pensar é, então, falar mentalmente consigo mesmo. Mas toda conversação supõe ao menos duas pessoas, uma são vocês, quem é a outra? É todo o mundo humano que vocês conhecem.

O homem, enquanto indivíduo animal, como os animais das outras espécies, desde o início e desde que começa a respirar, tem o sentimento imediato de sua existência individual; mas só adquire a consciência reflexiva de si, consciência que constitui propriamente sua personalidade, por meio da inteligência e, por conseguinte, somente na sociedade. A personalidade mais íntima de vocês, a consciência que têm de vocês mesmos em seu foro íntimo, é de certa maneira o reflexo de sua própria imagem, refletida e enviada de novo como por outros tantos espelhos pela consciência tanto coletiva como individual dos seres humanos que compõem seu mundo social. Cada homem que vocês conhecem e com o qual se encontram em relações, sejam diretas ou indiretas, determina mais ou menos seu ser mais íntimo, contribui a torná-los o que são, a constituir sua personalidade. Por conseguinte, se vocês estão rodeados de escravos, ainda que sejam o amo, não deixam de ser um escravo, pois a consciência dos escravos só pode enviar a vocês sua própria imagem aviltada. A imbecilidade de todos os imbeciliza, enquanto que a inteligência de todos os ilumina, eleva-os; os vícios de seu meio social são seus vícios, e não poderiam ser homens realmente livres sem estar rodeados de homens igualmente livres, pois a existência de um único escravo basta para diminuir sua liberdade. Na imortal declaração dos direitos do homem, feita pela Convenção Nacional, encontramos claramente expressada essa verdade sublime, que a escravidão de um único ser humano é a escravidão de todos.

Esses direitos contêm toda a moral humana, precisamente o que chamamos moral absoluta, absoluta sem dúvida em relação unicamente à humanidade, não em relação ao resto dos seres, e menos ainda em relação à totalidade infinita dos mundos, que nos é eternamente desconhecida. A encontramos em germe mais ou menos em todos os sistemas de moral que foram produzidos na História, e dos quais foi de certa maneira como a luz latente, luz que por demais só se manifestou, com muita freqüência, por reflexos tão incertos quanto imperfeitos. Tudo o que vemos de absolutamente verdadeiro, isto é, de humano, é devido somente a ela. E como haveria de ser de outra maneira, se todos os sistemas de moral que se desenvolveram sucessivamente no passado, assim como os outros desenvolvimentos do homem, inclusive os desenvolvimentos teológicos e metafísicos, não tiveram jamais outra fonte que a natureza humana, não foram mais do que suas manifestações mais ou menos imperfeitas? Mas essa lei moral que chamamos absoluta, o que é, senão a expressão mais pura, mais completa, mais adequada, como diriam os metafísicos, dessa mesma natureza humana, essencialmente socialista e individualista ao mesmo tempo?

O principal defeito dos sistemas de moral ensinados no passado é terem sido exclusivamente socialistas ou exclusivamente individualistas. Assim, a moral cívica, tal como nos foi transmitida pelos gregos e pelos romanos, foi uma moral exclusivamente socialista, no sentido de que sacrifica sempre a individualidade para a coletividade: sem falar das miríades de escravos que constituem a base da civilização antiga, que apenas eram levados em consideração como coisas, a própria individualidade do cidadão grego ou romano foi sempre patrioticamente imolada em benefício da coletividade constituída em Estado. Quando os cidadãos, cansados dessa imolação permanente, quiseram poupar-se do sacrifício, as repúblicas gregas primeiro, depois as romanas, desmoronaram. O despertar do individualismo ocasionou a morte da Antiguidade.

Esse individualismo encontrou sua mais pura e completa expressão nas religiões monoteístas, no judaísmo, no maometismo e no cristianismo acima de tudo. O Jeová dos judeus se dirige ainda à coletividade, ao menos sob certas relações, já que tem um povo eleito, mas contém já todos os germes da moral exclusivamente individualista.

Devia ser assim: os deuses da antiguidade grega e romana não foram, em última análise, mais do que símbolos, os representantes supremos da coletividade dividida, do Estado. Ao adorá-los, adorava-se o Estado, e toda a moral que foi ensinada em seu nome não pôde, por conseguinte, ter outro objeto que a salvação, a grandeza e a glória do Estado.

O Deus dos judeus, déspota invejoso, egoísta e vaidoso como só ele, cuidou-se bem, não de identificar, mas só de misturar sua terrível pessoa com a coletividade de seu povo eleito, eleito para lhe servir de tapete predileto no melhor dos casos, mas não para que se atrevesse a se levantar até ele. Entre ele e seu povo houve sempre um abismo. Assim, só admitindo ele mesmo como objeto de adoração, não podia suportar o culto ao Estado. Por conseguinte, dos judeus, tanto coletiva como individualmente, não exigiu nunca mais do que sacrifícios para si, jamais para a coletividade ou para a grandeza e a glória do Estado.

De resto, os mandamentos de Jeová, tal como nos foram transmitidos pelo Decálogo, dirigem-se quase exclusivamente ao indivíduo: só constituem exceção aqueles cuja execução supera as forças do indivíduo e exige o concurso de todos; por exemplo: a ordem tão singularmente humana que incita os judeus a extirpar até o último, inclusive as mulheres e as crianças, todos os pagãos que encontrarem na terra prometida, ordem verdadeiramente digna do Pai de nossa Santíssima Trindade cristã, que se distingue, como se sabe, por seu amor exuberante por esta pobre espécie humana.

Todos os outros mandamentos dirigem-se ao indivíduo: não matarás (excetuados os casos muitos freqüentes em que eu mesmo o ordene a você, deveria ter agregado); não roubarás nem a propriedade nem a mulher alheia (sendo considerada esta última como uma propriedade também); respeitarás teus pais. Mas, sobretudo, a mim adorarás, o Deus invejoso, egoísta, vaidoso e terrível, e se não quiseres incorrer em minha cólera, cantarás louvores e te prosternarás eternamente diante de mim.

No maometismo não existe nem sombra do coletivismo nacional e restrito que domina nas religiões antigas e do qual se encontra sempre alguns frágeis restos até no culto judaico. O Alcorão não conhece povo eleito; todos os crentes, de qualquer nação ou comunidade à qual pertençam, são individualmente, não coletivamente, eleitos de Deus. Assim, os califas, suces sores de Maomé, somente se chamarão chefes dos crentes. Mas nenhuma religião impulsionou tão longe o culto do individualismo como a religião cristã. Diante das ameaças do inferno e as promessas absolutamente individuais do paraíso, acompanhadas dessa terrível declaração de que dentre muitos chamados só haverá pouquíssimos eleitos, a religião cristã provocou uma desordem, um salve-se quem puder geral; uma espécie de corrida de apostas em que cada um só era estimulado por uma preocupação única: a de salvar sua própria alminha. Concebe-se que uma tal religião tenha podido e devido dar o golpe de graça à civilização antiga, fundada exclusivamente no culto à coletividade, à pátria, ao Estado, e dissolver todos seus organismos, principalmente em uma época em que já morria de velhice. O individualismo é um dissolvente tão poderoso! Vemos a prova disso no mundo burguês atual.

No nosso modo de ver, isto é, segundo o ponto de vista da moral humana, todas as religiões monoteístas, mas sobretudo a religião cristã, como a mais completa e a mais conseqüente de todas, são profunda, essencial e principalmente imorais: ao criar seu Deus, proclamaram a decadência de todos os homens, cuja solidariedade só admitiram no pecado; e ao estabelecer o princípio da salvação exclusivamente individual, renegaram e destruíram, tanto como puderam fazê-lo, a coletividade humana, ou seja, o princípio da humanidade.

Não é estranho que se tenha atribuído ao cristianismo a honra de ter criado a idéia da humanidade, da qual, ao contrário, foi o negador mais completo e mais absoluto.

Sob um aspecto pôde reivindicar essa honra, mas somente sob um: contribui de uma maneira negativa, cooperando potentemente, com a destruição das coletividades restritas e parciais da Antigüidade, apressando a decadência natural das pátrias e das cidades que, tendo-se divinizado em seus deuses, formavam um obstáculo para a constituição da humanidade; mas é absolutamente falso dizer que o cristianismo tenha tido jamais o pensamento de constituir a humanidade, ou que só tenha compreendido, sequer pressentido, o que chamamos hoje de solidariedade dos homens, nem a humanidade, que é uma idéia completamente moderna, entrevista pelo Renascimento, mas não concebida e enunciada de uma maneira clara e precisa até o século XVIII.

O cristianismo não tem absolutamente nada que fazer com a humanidade, pelo simples motivo que seu objeto único é a divindade, e uma exclui a outra. A idéia da humanidade repousa na solidariedade fatal, natural, de todos os homens. Mas o cristianismo, já o dissemos, só reconhece essa solidariedade no pecado, e a rejeita absolutamente na salvação, no reino desse Deus que sobre muitos chamados só faz graça a pouquíssimos eleitos, e que em sua justiça adorável, impulsionado sem dúvida por esse amor infinito que o distingue, antes inclusive de que os homens tivessem nascido sobre esta terra, tinha condenado a imensa maioria aos sofrimentos eternos do inferno, e isso para castigá-los por um pecado cometido, não por eles mesmos, mas por seus antepassados, que estiveram obrigados a cometê-lo: o pecado de infringir uma negação à presença divina. Tal é a lógica saudável e a base de toda moral cristã. O que o cristianismo tem a fazer com a lógica e a moral humana?

Em vão se esforçarão por nos provar que o cristianismo reconhece a solidariedade dos homens, citando fórmulas do Evangelho que parecem predizer o advento de um dia em que só haverá um único pastor e um único rebanho; em que será mostrada a nós a Igreja católica romana, que tende incessantemente para a realização desse fim pela submissão do mundo inteiro ao governo do papa. A transformação de toda a humanidade em um rebanho, assim como a realização, felizmente impossível, dessa monarquia universal e divina, não têm absolutamente nenhuma relação com o princípio da solidariedade humana, que é o único que constitui o que chamamos de humanidade. Não existe nem sombra dessa solidariedade na sociedade tal como a sonham os cristãos, e na qual não se é nada pela graça dos homens, mas tudo pela graça de Deus, verdadeiro rebanho de carneiros desagregados e que não têm e nem devem ter nenhuma relação imediata e natural entre si, até o ponto que lhes é proibido se unirem para a reprodução da espécie sem a permissão ou a benção de seu pastor, pois só o sacerdote tem direito a casá-los em nome desse Deus que forma o único traço de uma união legítima entre eles: separados fora dele, os cristãos não se unem, e só podem se unir nele. Fora dessa sanção divina, todas as relações humanas, mesmo os laços da família, são alcançadas pela maldição geral que afeta a criação; são reprovados a ternura dos pais, dos esposos, dos filhos, a amizade fundada na simpatia e na estima recíprocas, o amor e o respeito dos homens, a paixão do verdadeiro, do justo e do bom, a da liberdade, e a maior de todas, a que implica todas as outras, a paixão da humanidade; tudo isso está maldito e só poderia ser reabilitado pela graça de Deus. As relações dehomem a homem devem ser santificadas pela intervenção divina; mas essa intervenção as desnaturaliza, as desmoraliza, as destrói. O divino mata o humano e todo o culto cristão só consiste propriamente nessa imolação perpétua do humano em nome da divindade.

Que não se objete que o cristianismo ordena aos filhos amarem seus pais, aos pais amarem seus filhos, aos esposos se afeiçoarem mutuamente. Sim, ordena isso, mas apenas lhes permite amar imediata, naturalmente e por si próprios em Deus e por Deus; só admite todas essas relações atuais sob a condição de que Deus se encontre como terceiro, e esse terrível terceiro mata as uniões. O amor divino aniquila o amor humano. O cristianismo ordena, é verdade, amar nosso próximo tanto como a nós mesmos, mas nos ordena, ao mesmo tempo, amar Deus mais do que a nós mesmos e, por conseguinte, também mais do que ao próximo, isto é, sacrificar a ele o próximo por nossa salvação, porque, no final das contas, o cristão só adora Deus pela salvação de sua alma. Aceitando Deus, tudo isso é rigorosamente conseqüente: Deus é o infinito, o absoluto, o eterno, o onipotente; o homem é o finito, o impotente. Em comparação com Deus, sob todos os aspectos, não é nada. Só o divino é justo, verdadeiro, venturoso e bom, e tudo o que é humano no homem deve ser por isso mesmo declarado falso, iníquo, detestável e miserável. O contato da divindade com essa pobre humanidade deve devorar, pois, necessariamente, consumir, aniquilar tudo o que resta de humano nos homens.

A intervenção divina nos assuntos humanos não deixou nunca de produzir efeitos excessivamente desastrosos. Perverte todas as relações dos homens entre si e substitui sua solidariedade natural pela prática hipócrita e doentia das comunidades religiosas, nas quais, sob as aparências da caridade, cada um pensa só na salvação de sua alma, fazendo assim, com o pretexto do amor divino, egoísmo humano excessivamente refinado, cheio de ternura para si e de indiferença, de malevolência e até de crueldade para o próximo. Isso explica a aliança íntima que existiu sempre entre o carrasco e o sacerdote, aliança francamente confessa pelo célebre campeão do ultramontanismo, senhor De Maistre, cuja escrita eloqüente, depois de ter divinizado o papa, não dei xou de reabilitar o carrasco; um era, de fato, o complemento do outro.

Mas não é só na Igreja católica onde existe e se produz essa ternura excessiva para com o carrasco. Os ministros sinceramente religiosos e crentes dos diferentes cultos protestantes, não protestaram unanimemente em nossos dias contra a abolição da pena de morte? Não cabe dúvida que o amor divino mata o amor aos homens nos corações que estão penetrados dele; também não cabe dúvida que todos os cultos religiosos em geral, mas entre eles o cristianismo sobretudo, não tiveram jamais outro objeto que o sacrifício dos homens aos deuses. E entre todas as divindades de que nos fala a História, existe uma só que tenha feito verter tantas lágrimas e sangue como esse bom Deus dos cristãos, ou que tenha pervertido a tal ponto as inteligências, os corações e todas as relações dos homens entre si?

Sob essa influência doentia, o espírito eclipsou-se e a busca ardente da verdade transformou-se em um culto complacente à mentira; a dignidade humana desonrouse, o homem [uma palavra ilegível no original] tornava-se traidor, a bondade cruel, a justiça iníqua e o respeito humano transformaram-se em um desprezo crescente para os homens; o instinto da liberdade acabou no estabelecimento da servidão, e o da igualdade na sanção dos privilégios mais monstruosos. A caridade, ao se fazer delatora e perseguidora, ordenou a matança dos heréticos e as orgias sangrentas da Inquisição; o homem religioso chamou-se jesuíta, devoto ou pietista — renunciando à humanidade encaminhou-se para a santidade —, e o santo, sob as aparências de uma humanidade mais [uma palavra ilegível no original], tornou-se hipócrita, e com a caridade ocultou o orgulho e o egoísmo imensos de um eu humano absolutamente isolado que chama a si mesmo seu Deus. Porque não devemos nos enganar: aquilo que o homem religioso busca acima de tudo, e acreditaencontrar na divindade que ama, é a si mesmo, mas glorificado, investido pela onipotência e imortalizado. Ele também retirou dela, muito freqüentemente, pretextos e instrumentos para subjugar e para explorar o mundo humano.

É esta, pois, a primeira palavra do culto cristão: é a exaltação do egoísmo que, ao romper toda solidariedade social, ama a si mesmo em seu Deus e se impõe à massa ignorante dos homens em nome desse Deus, isto é, em nome de seu eu humano, consciente e inconscientemente exaltado e divinizado por si mesmo.

Por isso, os homens religiosos são ordinariamente tão ferozes: ao defender seu Deus, tomam partido por seu egoísmo, por seu orgulho e por sua vaidade.

De tudo isso resulta que o cristianismo é a negação mais decisiva e mais completa de toda solidariedade entre os homens, isto é, da sociedade e, por conseguinte, também da moral, já que, fora da sociedade — penso tê-lo demonstrado — não restam mais do que relações religiosas do homem isolado com seu Deus, isto é, consigo mesmo.

Os metafísicos modernos, a partir do século XVII, trataram de restabelecer a moral, fundando-a, não em Deus, mas no homem. Por desgraça, obedecendo às tendências de seu século, tomaram por ponto de partida, não o homem social, vivo e real, que é o duplo produto da natureza e da sociedade, mas o eu abstrato do indivíduo, à margem de todos seus laços naturais e sociais, aquele mesmo a quem o egoísmo cristão divinizou e a quem todas as Igrejas, tanto católicas como protestantes, adoram como seu Deus.

Como nasceu o Deus único dos monoteístas? Pela eliminação necessária de todos os seres reais e vivos.

Para explicar o que entendemos por isso, é necessário dizer algumas coisas sobre a religião. Não gostaríamos de falar sobre ela, mas na atualidade é impossível tratar questões políticas e sociais sem tocar na questão religiosa.

Pretendeu-se equivocadamente que o sentimento religioso apenas fosse próprio aos homens: encontram-se perfeitamente todos os elementos fundadores no reino animal, e entre esses elementos o principal é o medo. “O temor a Deus — dizem os teólogos — é o começo da sabedoria.” Pois bem, não se encontra esse temor excessivamente desenvolvido em todos os animais, e não estão todos os animais constantemente amedrontados?

Todos experimentam um terror instintivo diante da onipotência que os produz, os cria, os nutre, é verdade, mas que ao mesmo tempo os esmaga, os encobre por todas partes, que ameaça sua existência a cada instante e que termina sempre por matá-los.

Como os animais das outras espécies não têm esse poder de abstração e de generalização de que só o homem está dotado, não representam para si mesmos a totalidade dos seres que nós chamamos natureza, mas a sentem e a temem. Esse é o verdadeiro começo do sentimento religioso.

Não falta neles sequer a adoração. Sem falar do estremecimento de alegria que experimentam todos os seres vivos ao se levantar o sol, nem de seus gemidos diante da aproximação de uma dessas catástrofes naturais terríveis que os destroem por milhares, não é necessário mais do que considerar, por exemplo, a atitude do cachorro na presença de seu amo. Não está por completo nela a do homem diante de Deus?

Também não começou o homem pela generalização dos fenômenos naturais, e apenas chegou à concepção da natureza como ser único depois de muitos séculos de desenvolvimento moral. O homem primitivo, o selvagem, pouco diferente do gorila, compartilhou, sem dúvida, por longo tempo todas as sensações e as representações instintivas do gorila; e só foi depois de muito que começou a fazê-las objeto de suas reflexões, primeiro necessariamente infantis, a lhes dar um nome e por isso mesmo a fixá-las em seu espírito nascente. Foi assim que tomou corpo o sentimento religioso que tinha em comum com os animais das outras espécies; como se transformou em uma representação permanente e no começo de uma idéia, a da existência oculta de um ser superior e muito mais poderoso do que ele, e geralmente muito cruel e muito malfeitor, do ser que lhe causou medo, em uma palavra, de seu Deus.

Tal foi o primeiro Deus, de tal modo rudimentar, é verdade, que o selvagem que o procura por todo lugar para conjurá-lo acredita encontrá-lo às vezes em um pedaço de madeira, em um pano, em um osso ou em uma pedra: essa foi a época do fetichismo, de que encontramos ainda vestígios no catolicismo.

Foram necessários ainda séculos, sem dúvida, para que o homem selvagem passasse do culto dos fetiches inanimados ao dos fetiches vivos, ao dos feiticeiros. Chega a ele por uma longa série de experiências e pelo procedimento da eliminação: não encontrando a potência temível que queria conjurar nos fetiches, procura-a no homem-deus, o feiticeiro.

Mais tarde e sempre por esse mesmo procedimento de eliminação e fazendo abstração do feiticeiro, de quem por fim a experiência lhe demonstrou a impotência, o selvagem adorou sucessivamente todos os fenômenos mais grandiosos e terríveis da natureza: a tempestade, o trovão, o vento e, continuando assim, de eliminação em eliminação, ascendeu finalmente ao culto do Sol e dos planetas. Parece que a honra de ter criado esse culto pertence aos povos pagãos.

Isso era já um grande progresso. Quanto mais o homem distanciava-se da divindade, isto é, da potência que causa medo, mais respeitável e grandiosa ela parecia. Apenas era necessário dar um único grande passo para o estabelecimento definitivo do mundo religioso, e esse foi o da adoração de uma divindade invisível.

Até esse salto mortal da adoração do visível para a adoração do invisível, os animais das outras espécies teriam podido, com rigor, acompanhar seu irmão mais novo, o homem, em todas suas experiências teológicas.

Porque eles também adoram de seu jeito os fenômenos da natureza. Não sabemos o que podem experimentar em relação a outros planetas; mas estamos seguros de que a Lua e, sobretudo, o Sol exercem sobre eles uma influência muito sensível. Mas a divindade invisível só pôde ser inventada pelo homem. Mas o próprio homem, por qual procedimento pôde descobrir esse ser invisível, cuja existência real nenhum de seus sentidos, nem sua visão, puderam lhe ajudar a comprovar, e por meio de qual artifício pôde reconhecer sua natureza e suas qualidades? Qual é, enfim, esse ser suposto absoluto que o homem acreditou encontrar por cima e além de todas as coisas?

O procedimento foi essa operação bem conhecida do espírito que chamamos abstração ou eliminação, e o resultado final dessa operação não pode ser mais do que o abstrato absoluto, o nada. E é precisamente esse nada o que o homem adora como seu Deus.

Elevando-se por seu espírito sobre todas as coisas reais, até de seu próprio corpo, fazendo abstração de tudo o que é sensível ou sequer visível, inclusive o firma mento com todas as estrelas, o homem encontra-se frente ao vazio absoluto, ao nada indeterminado, infinito, sem nenhum conteúdo, sem nenhum limite.

Nesse vazio, o espírito do homem que o produziu por meio da eliminação de todas as coisas, apenas pôde encontrar, necessariamente, a si mesmo em estado de potência de abstração; vendo tudo destruído e não tendo já nada para eliminar, volta a cair sobre si em uma inação absoluta; e, considerando-se, nessa completa inação, um ser diferente de si, apresenta-se como seu próprio Deus e se adora.

Deus não é, pois, outra coisa que o eu humano absolutamente vazio por força da abstração ou da eliminação de tudo o que é real e vivo. Precisamente dessa maneira o concebeu Buda, que, de todos os reveladores religiosos, foi certamente o mais profundo, o mais sincero e o mais verdadeiro.

Só que Buda não sabia e não podia saber que era o próprio espírito humano que tinha criado esse Deus-nada.

Apenas no final do século XVIII a humanidade começou a reparar nisso, e só no século XIX, graças aos estudos muito mais profundos sobre a natureza e sobre as operações do espírito humano, chegou a percebê-lo completamente.

Quando o espírito humano criou Deus, procedeu com a mais completa ingenuidade e, sem o saber, pôde adorar-se em seu Deus-nada.

Não podia, porém, deter-se diante desse nada que tinha feito ele mesmo, devia preenchê-lo a qualquer preço e fazê-lo voltar à terra, à realidade vivente. Chegou a esse fim sempre com a mesma ingenuidade e pelo procedimento mais natural, mais simples. Depois de ter divinizado seu próprio eu nesse estado de abstração ou de vazio absoluto, ajoelhou-se diante dele, o adorou e o proclamou causa e autor de todas as coisas; esse foi o começo da teologia.

Deus, o nada absoluto, foi proclamado o único ser vivo, poderoso e real, e o mundo vivente, e, por conseqüência necessária, a natureza, todas as coisas efetivamente reais e viventes, ao serem comparadas com esse Deus, foram declaradas nulas. É próprio da teologia fazer do nada o real e do real o nada.

Procedendo sempre com a mesma ingenuidade e sem ter a menor consciência do que fazia, o homem se utilizou de um meio muito engenhoso e ao mesmo tempo muito natural para preencher o espantoso vazio de sua divindade: atribuiu-lhe simplesmente, exagerando-as sempre até proporções monstruosas, todas as ações, todas as forças, todas as qualidades e propriedades, boas ou más, benéficas ou maléficas, que encontrou tanto na natureza como na sociedade. Foi assim como a terra, entregue ao saque, empobreceu em proveito do céu, que enriqueceu com seus despojos.

Resultou disso que quanto mais o céu enriqueceu — a morada da divindade —, mais miserável se fez a terra; e bastava com que uma coisa fosse adorada no céu para que tudo que fosse contrário a essa coisa se encontrasse realizado neste baixo mundo. Isso é o que se chama de ficções religiosas; a cada uma dessas ficções corresponde, sabe-se perfeitamente, alguma realidade monstruosa; assim, o amor celeste não teve nunca outro efeito que o ódio terrestre, a bondade divina só produziu o mal, e a liberdade de Deus significa a escravidão aqui embaixo. Veremos de imediato que o mesmo acontece com todas as ficções políticas e jurídicas, pois tanto umas quanto as outras são, por outra parte, conseqüências ou transformações da ficção religiosa.

A divindade assumiu de repente esse caráter absolutamente maléfico. Nas religiões panteístas do Oriente, no culto dos brâmanes e no dos sacerdotes do Egito, tanto como nas crenças fenícias e sírias, apresenta-se já sob um aspecto bastante terrível. O Oriente foi em todo tempo e o é ainda hoje, em certa medida pelo menos, a pátria da divindade despótica, esmagadora e feroz, negação do espírito da humanidade. Essa é também a pátria dos escravos, dos monarcas absolutos e das castas.

Na Grécia, a divindade se humaniza — sua unidade misteriosa, reconhecida no Oriente apenas pelos sacerdotes, seu caráter atroz e sombrio, são relegados ao fundo da mitologia helênica —, ao panteísmo sucede o politeísmo.

O Olimpo, imagem da federação das cidades gregas, é uma espécie de república governada muito fragilmente pelo pai dos deuses, Júpiter, que obedece, ele também, os decretos do destino.

O destino é impessoal; é a própria fatalidade, a força irresistível das coisas, diante da qual tudo deve se curvar, homens e deuses. De resto, entre os deuses, criados pelos poetas, nenhum é absoluto; cada um representa só um aspecto, uma parte, seja do homem, seja da natureza em geral, sem deixar, porém, de serem por isso seres concretos e vivos. Completam-se mutuamente e formam um conjunto muito vivo, muito gracioso e acima de tudo muito humano.

Nada de sombrio nessa religião, cuja teologia foi inventada pelos poetas, somando cada um livremente algum deus ou alguma deusa nova, segundo as necessidades das cidades gregas, cada uma das quais se orgulhava de sua divindade tutelar, representante de seu espírito coletivo. Essa foi a religião, não dos indivíduos, mas da coletividade dos cidadãos de tantas pátrias restringidas e [a primeira parte de uma palavra ilegível]...mente livres, associadas por outra parte entre si, mais ou menos por uma espécie de federação imperfeitamente organizada e muito [uma palavra ilegível].

De todos os cultos religiosos que nos mostra a História, esse foi, seguramente, o menos teológico, o menos sério, o menos divino, e por isso o menos malfeitor, o que menos obstaculizou o desenvolvimento da sociedade humana.

Somente a pluralidade dos deuses mais ou menos iguais em potência era uma garantia contra o absolutismo; perseguido por uns, podia-se buscar a proteção dos outros, e o mal causado por um deus encontrava sua compensação no bem produzido por outro. Não existia, pois, na mitologia grega, essa contradição lógica e moralmente monstruosa, do bem e o mal, da beleza e a fealdade, da bondade e a maldade, do amor e o ódio concentrados em uma única e mesma pessoa, como acontece fatalmente no Deus domonoteísmo.

Encontramos essa monstruosidade ativa por completo no Deus dos judeus e dos cristãos. Era uma conseqüência necessária da unidade divina; e, de fato, uma vez admitida essa unidade, como explicar a coexistência do bem e do mal? Os antigos persas tinham imaginado pelo menos dois deuses: um, o da luz e do bem, Ormuzd, o outro, do mal e das trevas, Ahrimam; era natural, então, que combatessem, como combatem o bem e o mal, e triunfam sucessivamente na natureza e na sociedade. Mas, como explicar que um único e mesmo Deus, onipotente, todo verdade, amor e beleza, pudesse dar nascimento ao mal, ao ódio, à fealdade e à mentira?

Para resolver essa contradição, os teólogos judeus e cristãos recorreram às invenções mais repulsivas e mais insensatas. Primeiramente, atribuíram todo o mal a Satanás. Mas Satanás, de onde procede? É, como Ahrimam, o igual de Deus? De maneira nenhuma; como o resto da criação, é obra de Deus. Por conseguinte, esse Deus foi o que engendrou o mal. Não, respondem os teólogos; Satanás foi primeiro um anjo de luz e desde sua revolta contra Deus tornou-se anjo das trevas. Mas se a revolta é um mal — o que está muito sujeito a cautela, e nós acreditamos, ao contrário, que é um bem, pois sem ela não haveria existido nunca emancipação social —, se constitui um crime, quem criou a possibilidade desse mal?

Deus, sem dúvida, responderão ainda os mesmos teólogos; mas apenas fez o mal para deixar aos anjos e aos homens o livre arbítrio. E o que é esse livre arbítrio? É a faculdade de escolher entre o bem e o mal, e de decidir espontaneamente, seja por um seja por outro. Mas para que os anjos e os homens pudessem escolher o mal, para que pudessem se decidir pelo mal, é necessário que o mal tenha existido independentemente deles, e quem pôde lhe dar essa existência, senão Deus?

Também pretendem os teólogos que, depois da queda de Satanás, que precedeu à do homem, Deus, sem dúvida esclarecido pela experiência, não querendo que outros anjos seguissem o exemplo de Satanás, os privou do livre arbítrio, deixando-lhes apenas a faculdade do bem, de sorte que por decorrência são forçosamente virtuosos e não imaginam outra felicidade que a de servir eternamente como criados a esse terrível senhor.

Mas parece que Deus não foi suficientemente esclarecido por sua primeira experiência, já que, depois da queda de Satanás, criou o homem e, por cegueira ou maldade, não deixou de lhe conceder esse dom fatal do livre arbítrio, que perverteu Satanás e devia perverter o homem também.

A queda do homem, tanto como a de Satanás, era fatal, já que havia sido determinada desde a eternidade na presciência divina. De resto, sem remontar tão longe, nos permitiremos observar que a simples experiência de um honesto pai de família deveria ter impedido o bom Deus de submeter esses desgraçados primeiros homens à famosa tentação. O mais simples pai de família sabe muito bem que basta que se impeça uma criança de mexer em alguma coisa para que um instinto de curiosidade invencível a force absolutamente a fazê-lo. Portanto, se ama seus filhos e se é realmente justo e bom, os poupará dessa prova tão inútil quanto cruel.

Deus não teve nem essa razão nem essa bondade, nem essa [uma palavra ilegível], e mesmo sabendo de antemão que Adão e Eva deviam sucumbir à tentação, assim que se cometeu o pecado, eis que se deixa levar por um furor verdadeiramente divino. Não se contentou em maldizer os desgraçados desobedientes, maldisse toda sua descendência até o final dos séculos, condenando aos tormentos do inferno a milhares de homens que eram evidentemente inocentes, já que sequer tinham nascido quando se cometeu o pecado. Não se contentou em maldizer os homens, maldisse com eles toda a natureza, sua própria criação, que tinha encontrado tão bem feita.

Se um pai de família tivesse atuado dessa maneira, não teria sido declarado louco de pedra? Como se atreveram os teólogos a atribuir a seu Deus o que teriam considerado absurdo, cruel [uma palavra ilegível], anormal de parte de um homem? Ah, é que tiveram necessidade desse absurdo! Do contrário, como poderiam explicar a existência do mal neste mundo que deveria ter saído perfeito de mãos de um operário tão perfeito, deste mundo criado pelo próprio Deus?

Mas, uma vez admitida a queda, todas as dificuldades se igualam e se explicam. Assim o pretendem ao menos.

A natureza, primeiro perfeita, torna-se de repente imperfeita, toda a máquina se deteriora; à harmonia primitiva sucede o choque desordenado das forças; a paz que reinava no início entre todas as espécies de animais, cede lugar a essa carnificina espantosa, à devoração mútua; e o homem, o rei da natureza, a supera em ferocidade. A terra se torna um vale de sangue e de lágrimas, e a lei de Darwin — a luta impiedosa pela existência — triunfa na natureza e na sociedade. O mal transborda sobre o bem, Satanás afoga Deus.

E semelhante inabilidade, uma fábula tão ridícula, repulsiva, monstruosa, pôde ser seriamente repetida por grandes doutores em teologia durante mais de quinze séculos, o que estou dizendo? Ainda o é; mais do que isso, o é oficialmente, obrigatoriamente ensinada em todas as escolas da Europa. O que se deve pensar, então, depois de tudo isso, da espécie humana? E não têm mil vezes razão os que pretendem que traímos, ainda hoje, nosso próximo parentesco com o gorila?

Mas o espírito [uma palavra ilegível] dos teólogos cristãos não se detém nisso. Na queda do homem e em suas conseqüências desastrosas, tanto por sua natureza como por si mesmo, adoraram a manifestação da justiça divina.

Depois lembraram que Deus, não só era a justiça, mas também o amor absoluto e, para conciliar um com o outro, eis o que inventaram.

Depois de ter deixado essa pobre humanidade durante milhares de anos sob o golpe de sua terrível maldição, que teve por conseqüência a condenação de uns quantos milhões de seres humanos à tortura eterna, sentiu despertar o amor em seu seio, e o que fez? Tirou do inferno os infelizes torturados? Não, de maneira nenhuma; isso teria sido contrário a sua eterna justiça. Mas tinha um filho único; como e por que o tinha, é um dos mistérios profundos que os teólogos, que lhe deram esse filho, declaram impenetrável, o que é um jeito naturalmente cômodo para sair do assunto e resolver todas as dificuldades.

Portanto, esse pai cheio de amor, em sua suprema sabedoria, decide enviar seu filho único à terra, a fim de que se faça matar pelos homens, para salvar, não as gerações passadas, sequer as do porvir, mas, entre as últimas, como o declara o próprio Evangelho e como o repetem a cada dia tanto a Igreja católica como os protestantes, só um número muito pequeno de eleitos.

E agora a corrida está aberta; é, como dissemos acima, uma espécie de corrida de apostas, um salve-se quem puder, pela salvação da alma. Aqui, os católicos e os protestantes se dividem: os primeiros pretendem que não se entre no paraíso a não ser com a permissão especial do Santo Padre, o papa; os protestantes afirmam, por sua vez, que a graça direta e imediata do bom Deus é a única que abre as portas. Essa grave disputa continua ainda hoje; nós não entraremos nela.

Resumamos em poucas palavras a doutrina cristã.

Há um Deus, ser absoluto, eterno, infinito, onipotente; é a onisciência, a verdade, a justiça, a beleza e a felicidade, o amor e o bem absolutos. Nele tudo é infinitamente grande, fora dele está o nada. É, no final das contas, o Ser supremo, o Ser único.

Mas acontece aqui que do nada — que por isso mesmo parece ter tido uma existência à parte, fora dele, o que implica uma contradição e um absurdo, já que se Deus existe em todas partes e preenche com seu ser o espaço infinito, nada, nem o próprio nada, pode existir fora dele, o que faz acreditar que o nada de que nos fala a Bíblia estivesse em Deus, isto é, que o próprio ser divino fosse o nada —, Deus criou o mundo.

Aqui se coloca por si mesma uma questão. A criação foi realizada desde a eternidade, ou bem em um momento dado da eternidade? No primeiro caso, é eterna como o próprio Deus e não pode ter sido criada nem por Deus nem por ninguém; porque a idéia da criação implica a precedência do criador à criatura. Como todas as idéias teológicas, a idéia da criação é uma idéia por completo humana, tomada na prática da humana sociedade. Assim, o relojoeiro cria um relógio, o arquiteto uma casa, etc. Em todos esses casos, o produtor existe ao criar o produto, fora do produto, e é isso que constitui essencialmente a imperfeição, o caráter relativo e, por assim dizer, dependente tanto do produtor como do produto.

Mas a teologia, como faz, diga-se de passagem, sempre, tomou essa idéia e esse fato completamente humanos da produção e, aplicando-os a seu Deus, estendendo-os até o infinito e retirando-os por isso mesmo de suas proporções naturais, formou uma fantasia tão monstruosa quanto absurda.

Por conseguinte, se a criação é eterna não é criação. O mundo não foi criado por Deus, portanto tem uma existência e um desenvolvimento independentes dele. A eternidade do mundo é a negação de Deus, pois Deus era essencialmente o Deus criador.

O mundo, porém, não é eterno; houve uma época na eternidade em que não existia. Em conseqüência, transcorreu toda uma eternidade durante a qual Deus absoluto, onipotente, infinito, não foi um Deus criador, ou o foi em potência, não de fato.

Por que não o foi? Por capricho de sua parte, ou porque tinha a necessidade de se desenvolver para chegar com isso à potência efetiva criadora?

Esses são mistérios insondáveis, dizem os teólogos. São absurdos imaginados por vocês mesmos, nós respondemos.

Vocês começam por inventar o absurdo, e depois o impõem a nós como um mistério divino, insondável e tanto mais profundo quanto mais absurdo é.

É sempre o mesmo procedimento: Credo quia absurdum.

Outra questão: a criação, tal como saiu das mãos de Deus, foi perfeita? Se não o foi, não podia ser criação de Deus, porque o operário — é o próprio Evangelho que o diz — é julgado segundo o grau de perfeição de sua obra. Uma criação imperfeita suporia necessariamente um criador imperfeito. Portanto, a criação foi perfeita.

Mas se o foi, não pôde ter sido criada por alguém, porque a idéia da criação absoluta exclui toda idéia de dependência ou de relação. Fora dela não poderia existir nada.

Se o mundo é perfeito, Deus não pode existir.

A criação — responderão os teólogos — foi seguramente perfeita, mas só em relação a tudo que a natureza ou os homens podem produzir, não em relação a Deus. Foi perfeita, sem dúvida, mas não perfeita como Deus.Responderemos de novo que a idéia de perfeição não admite graus, como não os admitem nem a idéia do infinito nem a do absoluto. Não pode se tratar de mais ou menos. A perfeição é uma. Portanto, se a criação foi menos perfeita que o criador, foi imperfeita. E então voltaremos a dizer que Deus, criador de um mundo imperfeito, não é mais do que um criador imperfeito, o que equivaleria à negação de Deus.

Observa-se que, de todas as maneiras, a existência de Deus é incompatível com a do mundo. Se existe o mundo, Deus não pode existir. Passemos a outra coisa.

Esse Deus perfeito cria um mundo mais ou menos imperfeito. Cria-o em um momento dado da eternidade, por capricho e, sem dúvida, para combater o tédio de sua majestosa solidão. De outro modo, para que o teria criado?

Mistérios insondáveis, gritarão os teólogos. Besteiras insuportáveis, nós responderemos.

Mas a própria Bíblia nos explica os motivos da criação.

Deus é um ser essencialmente vaidoso, criou o céu e a terra para ser adorado e louvado por eles. Outros pretendem que a criação foi o efeito de seu amor infinito. Por quem? Por um mundo, por seres que não existiam, o que existia no começo unicamente em sua idéia, isto é, sempre para ele?

[O final deste manuscrito, se foi escrito, não foi encontrado]

Tradução do espanhol por Natalia Montebello.

Notas

1 Texto extraído de: Mikhail Bakunin. Obras completas, tomo 4. Tradução de

Diego Abad de Santillán. Madrid, Las Ediciones de la Piqueta, 1979. Escrito

em 1871.

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