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Malatesta


Errico Malatesta via no anarquismo um alvo a realizar subtraído a qualquer apriorismo filosófico ou científico. Não subordinava o anarquismo a nenhuma teoria,não o estabelecia enquanto sistema; para ele, o anarquismo era, antes de mais nada, uma atitude: antiautoritarismo e solidariedade social. Uma visão bem diferente de outros teóricos do anarquismo, para os quais, como Kropotkin, o anarquismo se constituía enquanto sistema ou em obediência às leis da ciência.

Para Malatesta, o anarquismo é o objetivo prático a conseguir através da ação social das massas; o anarquismo consiste no complexo de métodos e formas de ação, tendo como base a vontade realizadora. Desenvolve Malatesta uma concepção voluntarista em contraposição à concepção determinista (Kropotkin) para quem o anarquismo seria “inevitável”, determinado por uma lei do progresso.

Malatesta define que a existência de uma vontade capaz de produzir efeitos novos, independentemente das leis mecânicas da natureza, constitui uma pressuposição necessária para aquele que defende a mudança social2. A finalidade da propaganda anarquista, para ele, era formar essa vontade, difundindo idéias e exemplificando com fatos. Para que o anarquismo seja uma realidade enquanto vida de grupos sociais, dizia ele, era necessário que interviesse a vontade organizadora de seus membros, capazes de estabelecer, com base na liberdade, todas aquelas relações fundadas na autoridade. A destruição dos órgãos autoritários e a ampliação de novas estruturas fundadas na liberdade, segundo ele, não se dará por via espontânea e automática; tanto para a destruição como para criação a vontade humana está presente. A harmonia entre os homens não se deve a uma ação espontânea da natureza, somente pela ação consciente e voluntária será ela conseguida, diz Malatesta.

Não negava ele a existência de relações de causalidade nos fenômenos sociais e históricos, apenas regia pela negação da subjetividade, da vontade humana no processo histórico. Uma vida consciente e ativa pressupõea eficiência da vontade, sujeita às limitações de ambiente e época histórica.

Cabe às ciências sociais, diz ele, estudar as leis gerais que regem o desenvolvimento das sociedades e aomesmo tempo fazer com que as vontades dos indivíduos concorram unanimemente a um objetivo comum perseguidopor todos.

Para Malatesta, a noção de anarquia está fundada norespeito à personalidade humana e no amor às pessoas. A luta pela libertação da humanidade da opressão e exploração, para ele, só pode ser fruto de uma vontade: a vontade daqueles que desejam tal libertação.

Ao justificar por que intitulara de Volontá a revista por ele publicada em Ancona (Itália), Malatesta explicava que este nome era uma reação às teorias deterministas e fatalistas que negam o livre-arbítrio do homem.

Para ele, tais teorias são paralisantes da ação humana, além de extinguirem qualquer entusiasmo humano.

Além do mais, dizia ele, o título Volontá aplica-se muito bem ao desejo de uma sociedade em que os homens cooperem voluntariamente para o bem coletivo.

Criticava ele os deterministas mecanicistas de sua época no meio anarquista que pretendiam reduzir o movimento social a uma lei mecânica, onde tudo está predeterminado por antecedentes físico-mecânicos. Num sistema deste tipo não há lugar para o sujeito, para a vontade e a para liberdade, argumenta Malatesta.

Pergunta ele: ao aplicar-se aos fatos sociais e morais da vida humana a interpretação mecânica dos fenômenos como na física, química, fisiologia, chega-se à conclusão de Laplace, segundo a qual tudo que sucedeu deveria ter sucedido daquela forma. Que lugar haveria num sistema destes para a vontade, responsabilidade e liberdade?

Se o homem não influi nas coisas, para quê educação?

Se o homem nada tem a aprender num universo determinístico, a pedagogia é totalmente desnecessária.

Por valorizar o fator vontade, Malatesta opunhase na sua época a todos os deterministas mecanicistas, viessem da corrente anarquista, como Kropotkin, viessem da corrente marxista, como Kautsky, Labriola. Assim, reagia ele à interpretação determinista que Karl Kautsky, o maior teórico da II Internacional, dava aosconceitos de “miséria crescente”, “concentração do capital”.

Da mesma forma não idealizava as massas; para ele havia massas reacionárias, conservadoras e revolucionárias.

O predomínio de uma dessas tendências submetiase à lei do ascenso e descenso do movimento das massas. Em períodos de ascenso social, as massas tornamse audaciosas, criativas e reivindicativas; num período de descenso do movimento social, apareciam apáticas, submissas e recolhidas à vida privada.

É claro que aí se coloca o problema, segundo os marxistas reside na “vanguarda”, segundo os anarquistas reside nas minorias; essas minorias — incluída a minoria anarquista — devem, segundo ele, estar sempre junto às massas, formar núcleos que organizem a vontade de mudança social. Embora trataremos com mais detalhes deste aspecto mais adiante, avançamos por ora, dizendo que ele via na minoria uma vanguarda, porém, fundamentada numa poderosa “retaguarda”.

Critica Malatesta qualquer idealização da massa, pelo fato de a miséria e opressão que ela sofreu milenarmente terem efeitos negativos na sua conduta; aos efeitos deprimentes da miséria e opressão, ele opõe os efeitos construtivos da influência moralizadora do trabalho.

Vê ele uma missão para a minoria anarquista e voluntarista: derrubado o Estado burguês, a anarquia só pode vir na medida em que a massa conceba-a e desejea; porém, nunca viria se não houvesse uma minoria anarquista que preparasse o ambiente para isso. E isso através do exemplo: essa minoria anarquista, estruturando formas livres de vida, leva-as à sua multiplicação no âmbito social.

O anarquismo não está vinculado a nenhuma escola filosófica específica, o indivíduo pode ser anarquista sendo espiritualista ou materialista. Pois ele nasceu da rebeldia às injustiças socias. Quando um grupo de homens percebeu que a miséria e dor dos trabalhadores não são devidas a nenhuma lei inexorável, mas fruto de uma organização social dividida em classes, cabendo lutar para suprimir essa desigualdade, surgiu o anarquismo, diz Malatesta.

Diferente de Malatesta, Kropotkin concebia o anarquismo como uma filosofia científica no sentido positivista do termo, admitia que o anarquismo tinha como base a interpretação mecânica dos fenômenos da natureza englobando as sociedades humanas, acreditava encontrar na natureza a comprovação do seu ponto de vista, segundo o qual a anarquia era a ordem natural, pela qual a harmonia reinará em todas as coisas, inclusive nas sociedades humanas.

Liberdade para todos

Dessa maneira sintetizava Malatesta o anarquismo.

Tratava-se não de uma liberdade teórica e jurídica, senão de uma liberdade de fato, que consiste na ausência de toda coerção violenta do homem sobre o homem e na faculdade de cada um dispor de si mesmo e fazer o que quiser, tendo como limite a liberdade dos outros. No entanto, para Malatesta, isso não era um ideal de realização longínqua, mas também uma norma de conduta, de luta a partir do aqui e do agora, no contexto da sociedade existente.

Esse aspecto, mesmo entre os anarquistas, é tratado abstratamente. Muitas vezes, eles agem autoritariamente hoje, reservando-se para amanhã agirem libertariamente. Contra esse tipo de inconsistência, Malatesta pregava constantemente. Uma vez, na pequena aldeia da Umbria, em Foligno, em junho de 1897, um Círculo Católico quis inaugurar sua sede com uma procissão religiosa. Os anticlericais da localidade, incluindo os anarquistas, dissolveram a procissão a paus e socos. Este é um dos casos em que o dogmatismo, mesmo anti-religioso, conduz a atitudes autoritárias na prática.

Num artigo intitulado “Per La Libertá”, L’Agitazionede Ancona de 2 de setembro de1897, escreve Malatesta a respeito: “que isto seja visto como um triunfo liberal e que os liberais façam isso, uma experiência secular provou o, o que por liberdade entende a classe social que triunfou com a revolução de 1789: a burguesia. Começou seu reinado assassinando os prisioneiros e guilhotinando em massa a nobres e populares, “realistas” e comunistas; defendeu-se com inaudita ferocidade sempre que viu seus privilégios perigarem, restabelecendo a odiosa ordenação Real que contém uma arbitrária de prisão ou de desterro. Parece-me que nas violências contra os clericais, tomaram parte os anarquistas e isso me envergonha. Sabemos — escreve Malatesta — que, apesar dos programas, o espírito de violência e dominação, a tendência a abusar da força e a voluptuosidade de impor aos demais as próprias idéias, estão muito vivas no ânimo daqueles que se proclamam partidários da liberdade, mesmo da liberdade absoluta. Está na hora de limitar e deter o avanço do autoritarismo que existe em nossos meios e dizer bem alto que não é anarquista o que não respeita nos outros a liberdade que reclama para si, que, odiando os esbirros, adota suas posturas quando tem oportunidade de fazê-lo.Devemos opor à propaganda a propaganda e não recorrer à repressão. Caso o contrário, a população acreditará que seremos tiranos iguais aos outros quando formos mais fortes, que a anarquia será vã palavra como foi vã a palavra liberdade, da qual os burgueses, antes de seu triunfo, diziam ser defensores”.

Da mesma maneira, polemiza Malatesta com aqueles anarquistas que defendem o ponto de vista segundo o qual a liberdade plena é para a futura sociedade; no caso da sociedade atual, enquanto existir como é, devem ser negados aos inimigos qualquer liberdade ou qualquer direito. Malatesta critica veementemente essa concepção que permite a liberdade na sociedade futura, negando-a no presente. Assim pensando, é que se estabeleceram e se estabelecem as tiranias presentes e futuras. Liberdade para todos, sem outro limite que a igual liberdade aos demais, isso não significa respeitar a opressão, a exploração que são o oposto da liberdade, argumenta ele.

Raciocina Malatesta: o adversário pode estar errado, sua propaganda pode produzir danos, no entanto, tem direito à liberdade mais completa. De outra maneira: quem julgaria qual é a verdade permitida e a verdade proibida? O direito a combater e suprimir o erro pela violência é teoria de inquisidores, serviu de justificação a todas as tiranias.

Os anarquistas só usam violência para resistir e subtrair-se a ela. São partidários de que a liberdade que reclamam para si seja estendida a todos sem exceção, seja a liberdade de imprensa, palavra e reunião. Porém, a liberdade para saquear, incendiar e assassinar, pregada pelo fascismo, é arbitrariedade infame, prepotência e violação de todas as liberdades.

No artigo “Religione e questione sociale” em L’Agitazione, Ancona, 12 de agosto de 1897, escrevia Malatesta: “Somos inimigos da religião como somos inimigos da economia política burguesa, que substitui os decretos de Deus pelas leis naturais...” e, finalmente, justifica dessa forma a dominação e exploração da maioria por uma minoria.

Porém, diz ele, é possível que da idéia de Deus uns deduzam que é importante lutar pela igualdade e liberdade humana e outros infiram o dever de obediência e resignação ante a hierarquia. Da mesma forma acontece com a hipótese darwiniana: uns deduzem a justificação do regime burguês e outros a razão de ser do socialismo, acrescenta.

Muito mais importante do que crer ou não crer em Deus era o fato de o trabalhador rural poder olhar seu amo de frente, esclarece Malatesta.

Nesse sentido, diz ele, possui a fé que remove montanhas, porém não a fé cega, mas resultado de uma firme vontade unida a uma forte esperança.

Questão de organização

Uma das maiores preocupações de Malatesta dizia respeito à organização operária e sindicalismo. Dava ele à discussão a respeito de organização a importância máxima, pois via na anarquia uma organização libertária em substituição a uma organização autoritária.

Em 1886, na Argentina, via-se nascer as primeiras organizações operárias por sua obra. Exerceu imensa influência nos fundadores do anarco-sindicalismo francês, Pelloutier e Pouget, que visitavam-no por ocasião de seu exílio em Londres. A partir de 1897, sua propaganda em favor do anarco-sindicalista na Itália cresce e influencia Armando Borghi, o grande organizador operário de Bolonha.

Bem antes de falar-se em sindicalismo, Malatesta pregava a “ação direta”, a “greve geral” e a solidariedade de classe acima da divisão dos partidos políticos operários.

Num artigo publicado no número 847 do jornal Il Risveglio de Genebra, em 1 de maio de 1932, escrevia ele a respeito: “Devemos procurar influir diretamente sobre a massa e conseguiríamos isso se vivêssemos em seu seio, se fizéssemos uma propaganda clara, simples, vinculada ao quotidiano em lugar de assumirmos ares filosóficos, querer a todo preço aturdir o mundo e permanecermos entre nós discutindo bagatelas, dizer coisas terríveis que... jamais se realizam.”

Incitou sempre seus companheiros a permanecerem no meio da classe trabalhadora, esclarecendo-a de que ela não pode emancipar-se senão pela abolição de qualquer poder político. Pregava a criação e participação nas associações operárias onde existirem. Segundo ele: “a concordância, a associação, a organização são a lei da vida e o segredo da força hoje como após a revolução”, conforme artigo seu no jornal La Révolte, em 1 de outubro de 1892, Paris.

Para ele, a greve tinha uma função educativa, especialmente na sua preparação, os trabalhadores aprendem a lição da solidariedade, do apoio mútuo, embora não seja a greve que irá resolver a questão social.

Porém, considerava Malatesta, o movimento sindical que começa reivindicativo tende rapidamente a degenerar.“Quanto mais forte se torne este movimento, mais ele se torna egoísta, conservador, ocupado exclusivamente com seus interesses imediatos e restritos e desenvolve em seu seio uma burocracia que, como sempre, não tem outro objetivo senão o de fortalecer e de crescer”3.

Embora os sindicalistas revolucionários representem uma posição avançada na luta sindical, adverte Malatestaque “cada instituição possui uma tendência a desdobrar suas funções, a se perpetuar e a se tornar seu próprio objetivo”.

A questão é que o mercado de trabalho é regulado por normas capitalistas, daí os trabalhadores são colocados em posição de concorrerem entre si; o interesse de cada trabalhador é ter seu emprego, em conseqüência concorre com os desempregados de seu país e com a mãode-obra estrangeira. O sindicalismo está condenado a ocupar-se mais dos interesses de certa categoria profissional de operários do que dos interesses do público em geral, do interesse dos sindicatos mais do que dos interesses dos desempregados e dos interesses da classe operária. Os sindicatos, à medida que são abertos a todos, perdem em importância suas opiniões sobre a organização social global; à proporção que o sindicato cresce numericamente, seus fundadores perdem-se na grande massa, enquanto que a maioria se ocupa das pequenas questões do momento.

Conclui Malatesta: “Assim, pode-se ver desenvolverse em todos os sindicatos que atingiram uma posição influente a tendência a assegurar — em acordo ao invés de contra os patrões — uma situação privilegiada, a criar dificuldades para a admissão de novos membros, uma tendência a entesourar fundos que eles temem depois comprometer, a procurar o favor dos poderes públicos: a se absorver inteiramente na cooperação e em todas espécies de mutualidades e a se tornar em elemento conservador na sociedade”4.

Entendia ele que o movimento sindical não poderia substituir o movimento anarquista, caberia ao anarquismo uma função estimuladora no sindicato, combater tudo o que tenda a tornar o sindicalista egoísta, conservador, o orgulho profissional, o espírito corporativista, as grandes cotizações, acumulação dos capitais investidos, confiança nas boas funções do governo, burocratas remunerados e funcionários permanentes. Vaticina para os anarquistas o mesmo fim que coube aos social-democratas, logo após eles terem entrado no parlamento: “Ganharam em força numérica mas se tornaram cada dia menos socialistas. Nós — escreve ele — nos tornaremos cada dia mais numerosos, mas cessaremos de ser anarquistas”5.

Paralelamente à sua crítica ao sindicalismo, ele não poupava crítica à greve geral, como substituto da insurreição, achando seus defensores que ela obrigaria a burguesia a render-se premida pela fome!

Houve até militantes que procuravam armazenar ervas e “pílulas” capazes de sustentar indefinidamente o corpo humano sem necessidade de alimentá-lo, colocando os proletários em condições de esperar num jejum pacífico que os burgueses viessem desculpar-se e pedir perdão!

Para ele, por sua natureza, o sindicalismo operário tende ao reformismo. O movimento operário, se não for fecundado pela crítica dos revolucionários libertários, longe de levar à mudança social, levará à maior adaptação à sociedade existente. O sindicato não pode ser um veículo a-histórico para mudança social, ele é fruto do regime capitalista; um regime socialista deverá encontrar outros órgãos para que cumpram as tarefas desse novo regime.

Malatesta insistia em que os sindicatos, como as cooperativas, podem ser órgãos provisórios que sirvam à transição ao anarquismo. Queria ele dirimir a confusão existente entre sindicalismo e movimento anarquista; o sindicato deve ser autônomo ante qualquer partido ou tendência para cumprir seu papel de resistência dos trabalhadores ante ao capital e o anarquismo deve ter um movimento autônomo ante qualquer organização operária existente, para cumprir seu papel de incentivador, organizador da revolta social, dos trabalhadores, setores médios, homens e mulheres, trabalhadores urbanos ou rurais.

Explica Malatesta que aos anarquistas não interessa dominar a União Sindical Italiana, não pretende opoder porque não quer dominar. O homem que pensacom seu próprio cérebro é preferível àquele que quer dominar tudo e aprova cegamente tudo. Admitia que, para ele, os sindicatos têm uma função positiva sob o capitalismo, agregar os trabalhadores e organizá-los na luta econômica.

O capital opõe trabalhadores de um setor industrial aos de outro setor. Exemplifica ele com a Federação Americana do Trabalho, nos Estados Unidos; a grande luta dessa Federação é contra os forasteiros, recém-chegados à procura de uma carteira sindical, aqueles que não podem obter trabalho nas fábricas, que recorrem à Federação, que vão oferecer sua força de trabalho a um patronato que os emprega por salários inferiores aos do mercado. É característica do sindicalismo norte-americano que quando consegue alcançar o número de sócios que permite à organização tratar o patronato de igual para igual, procura impedir a entrada de novos sócios.

Nesse contexto, os operários qualificados desdenham os manuais, os brancos oprimem os negros, os “verdadeiros” norte-americanos desprezam os trabalhadores de origem chinesa ou italiana.

Num período revolucionário, diz Malatesta, os sindicalistas serão muito valiosos, com a condição de que sejam menos sindicalistas.

Há anarquistas que vinculam diretamente o movimento operário ao anarquismo: são os anarco-sindicalistas.

Na ação sindical, o grave não é aceitar um cargo de direção, é perpetuar-se nesse cargo. É importante, adverte Malatesta, que o pessoal dirigente se renove mais rapidamente, seja para capacitar um número maior de trabalhadores nas funções administrativas, seja para impedir que o trabalho de organizador se transforme em profissão, imbuindo as lutas operárias com a preocupação da perda do cargo.

Os sindicalistas como os anarquistas têm aversão ao comunismo estatal, querem também prescindir do governo substituindo-o por sindicatos e atribuem a eles a função de controlar as riquezas, requisitar víveres, distribuí-los, organizar a produção e a distribuição dos produtos necessários à sociedade. Não haveria inconveniente, argumenta Malatesta, se os sindicatos o fizessem desde que abrissem suas portas para todos e deixassem os dissidentes se auto-organizarem.

Porém, a expropriação e distribuição de bens devem ser definidas através de assembléias populares, especificando os grupos ou indivíduos encarregados de fazêlas.

Ocorre que, se existe um pequeno número de pessoas que por um longo hábito são consideradas chefes dos sindicatos e existem secretários permanentes e organizadores oficiais, seriam eles que organizariam a revolução tendendo a considerar como intrusos os que quiserem tomar iniciativas independentes deles e desejarão, embora com as melhores intenções, impor sua vontade, mesmo usando força.

Qual seria o resultado disso? pergunta Malatesta. Ele mesmo tem a resposta: o regime sindicalista se transformaria na mesma tirania em que se transformou a chamada ditadura do proletariado. O remédio contra esse perigo radicaria na existência de uma massa de indivíduos capazes de iniciativas e tarefas práticas, na massa não abandonar causas coletivas nas mãos de qualquer um e delegar só para cargos determinados e por pouco tempo. Tal espírito só pode ser criado por sindicato onde a influência libertária for importante.

Há partidos políticos que pretendem atrelar o sindicato a suas posições e práticas, isso deve ser combatido, da mesma maneira deve ser rejeitada a posição de “excluir a política dos sindicatos”, o que esconde uma mentira. A política é parte integrante da vida social, à medida que existe um Estado a serviço de uma classe dominante que impregna com sua presença a esfera econômica, política e social. Nenhuma organização operária pode ser independente de partidos a não ser que se transforme num. Portanto é vã a espera em excluir a política dos sindicatos. Qualquer greve econômica transforma-se numa greve política e é neste âmbito que a solução do dilema autoridade e liberdade terá lugar.

Enquanto os trabalhadores reivindicam pequenas concessões da classe dominante, a luta é mantida pelos capitalistas no âmbito econômico; tão logo estes se vêem prejudicados — argumenta Malatesta — como na rebelião de Mussolini na Itália e Franco na Espanha, empregam seu poder econômico para financiar um novo regime que possa melhor servi-los.

A aceitação da sociedade de classes, a limitação da luta a migalhas econômicas, é característica da Federação Americana do Trabalho e das trade unions inglesas; ao fazer isso o sindicato transforma-se numa correia de transmissão dos desejos da classe dominante. A ação puramente sindical tende ao reformismo, ela pode chegar a encarnar a idéia de mudança social, por influência daqueles que têm um ideário claro a respeito.

A organização anarquista

Malatesta polemizou muito contra aqueles anarquistas individualistas que negam a necessidade de uma organização. Para ele a organização não é somente a prática da cooperação e da solidariedade, condição de existência da vida social, ela constitui um fato que se impõe a todos.

O homem só é verdadeiramente homem na sociedade, contando com a cooperação de seus semelhantes.

O erro maior dos inimigos de qualquer forma de organização consiste no fato de acreditarem que não pode haver organização sem autoridade, preferindo renunciar a qualquer tipo de organização para não aceitar a mais mínima autoridade.

O homem conheceu várias alternativas de sociabilidade: sofrer a autoridade dos outros (escravos), impor sua vontade aos outros (ser a autoridade) ou viver com os outros mediante um acordo fraternal (ser um associado).

Ninguém pode eximir-se dessa necessidade social e os anti-organizadores radicais não deixam de sofrer os resultados da organização geral da sociedade em que vivem; inclusive na sua rebelião contra a organização se organizam com aqueles que estão de acordo e utilizam os meios de que a sociedade dispõe.

No caso do movimento anarquista, ou ele parte para ação organizada ou sucumbirá na impotência e no isolamento e cairá numa completa apatia. Pode declarar que quer conhecer algo e não quer fazer algo, porém, para Malatesta, o socialismo e o anarquismo são finalidades, projetos a serem postos em prática. Se os anarquistas não conseguem reunir-se em associação, precisando de chefes, isso quer dizer que eles devem capacitar-se a viver anarquicamente antes de mais nada.

É na impotência da ação coletiva do povo que surgem as burocracias que ocupam seu lugar, burocracia policial para garantir a ordem nas ruas; se o produtor não tem contato direto com o consumidor para satisfazer uma demanda econômica, surge o intermediário, o comerciante para ocupar um espaço.

Quanto menos organizado estiver o povo, tanto mais estará dependente da ação de um indivíduo investido como chefe.

O que elimina a liberdade e torna impossível a iniciativa não é a organização, é o isolamento que torna os homens impotentes. É na cooperação com os outros homens que o homem encontra espaço para desenvolver sua iniciativa.

Para Malatesta, uma organização anarquista deverá estruturar-se com base na plena autonomia e liberdade e, portanto, sob a plena responsabilidade dos indivíduos e dos grupos; o livre acordo entre os envolvidos na luta por um fim comum, o dever moral em manter os compromissos aceitos. Os grupos, as federações devem desenvolver uma prática que não contrarie o programa definido e aceito por todos.

Os congressistas, numa organização anarquista, embora possuam todas imperfeições dos órgãos representativos, estão imunes ao autoritarismo na medida em que não legislam nem impõem ao grupo suas próprias deliberações. Servem para manter e aumentar as relações pessoais entre os militantes mais ativos, sintetizando os estudos a respeito das formas de ação na sociedade, formulando opiniões correntes entre os anarquistas.

Elaboram estatísticas, porém suas decisões não constituem regra obrigatória, senão para aqueles que as aceitam e enquanto as aceitarem.

Numa organização anarquista todos os membros podem expressar todas as opiniões e empregar todas as técnicas que estejam de acordo com os fins estabelecidos.

Uma organização dura enquanto o consenso superar o dissenso, caso contrário, ela se extingue e dá espaço a outras que apareçam.

A duração de uma organização libertária deve ser o resultado da afinidade entre seus membros e de sua adaptabilidade às situações que mudam. Há inúmeros libertários, diz Malatesta, que só aceitam atuar em organizações anarquistas ou que tenham o anarquismo como finalidade; tal método condenará o anarquismo à esterilidade.

O trabalhador que compreender que sua força é a solidariedade com seus iguais, que compreender a burguesia e o Estado como parasitas, mesmo que não o diga, é um anarquista, escreve Malatesta.

Fortalecer os movimentos sociais populares é uma conseqüência lógica da adoção das idéias anarquistas e deveria fazer parte do programa de qualquer entidadeanarquista.

A diferença entre a organização anarquista e a estatal é que a organização anarquista é voluntária, estruturadalivremente pelos diretamente interessados, enquanto a organização estatal é coativa, imposta segundo os interesses de classes ou grupos dominantes. Organização autoritária é aquela em que os adeptos põem seu direito de iniciativa e de intervenção em mãos de alguns indivíduos que devem pensar por todos e servirse da força coletiva para realizar sua vontade particular, enquanto na organização anarquista cada membro é um indivíduo autônomo que se associa em condições de paridade com os que têm os mesmos objetivos, para encontrar na associação o apoio que lhe falta se agisse isoladamente. Assim, a organização direta, livre, sem obrigações impostas, é a anarquia.

A anarquia é uma sociedade fundada no livre acordo de vontades livres, de todos e de cada um. Explica Malatesta, no plano teórico somos pela liberdade contra a autoridade, no plano prático, somos pela livre ação do povo contra toda ditadura. Quando falamos de interesse geral, exemplifica Malatesta, entendemos o bem de todos, isto é, de cada indivíduo e não este pretenso interesse social que sempre foi a mentira que serviu para justificar todas as tiranias. Esse bem só será alcançado garantida a liberdade individual total. O interesse geral deve ser a soma dos particulares; quando em conflito, é preciso que se harmonizem na base de concessões mútuas. Se, ao contrário, é um governo que deve findar com esses conflitos, significa a pretensa harmonização, na prática o sacrifício da maioria e o triunfo dosgovernantes e seus amigos. Anarquia, para Malatesta, significa não-governo e ainda com mais razão não-ditadura, entendida como governo absoluto sem limites ou controles constitucionais.

Ironicamente nota Malatesta: quem diz que a anarquia não é um ideal sublime? Mesmo os prefeitos e os magistrados concordam com isso; enquanto esperam, prendem-nos e nos fuzilam!

Coisas administradas pelo livre acordo significam anarquia, administradas pelos burocratas do governo é Estado, igual à tirania.

Anarquia e socialismo são interligados como o fundo à forma, o fim ao meio. O socialismo sem anarquia é o Socialismo de Estado, que é uma impossibilidade, pois o socialismo seria destruído pelo órgão que deveria mantêlo: o Estado.

Quanto à imposição do anarquismo, Malatesta é taxativo: diz ele, não queremos e não podemos impor a anarquia pela força a quem quer que seja. Fazê-lo seria uma contradição em termos. Se os trabalhadores, escreve ele, quiserem ter seu governo, nós lhes deixaremos toda a liberdade de construí-lo com quem eles quiserem.

Mas sob a condição de que, também, tenhamos a nossa liberdade de experimentar nossas idéias, nossos sistemas, toda a forma de organização libertária de que formos capazes, sem ter que prestar juramento, pagar impostos, sem que sejamos obrigados a fazer o que quer que seja, senão o que consideremos livremente ser nosso dever fazê-lo.

Salienta Malatesta, a anarquia não se impõe pela força e não poderíamos querer impor aos outros nossas próprias concepções, sem cessar de ser anarquistas; desejamos viver anarquicamente tanto quanto as circunstâncias exteriores nos permitirem, assim como nossas capacidades.

O que queremos fazer pela força, esclarece Malatesta, é expropriar aqueles que detêm os meios de produção e que obrigam os deserdados a trabalhar para eles e também, evidentemente, destruir o poder governamental: sem isso a expropriação não seria possível, assim como a reorganização da sociedade que a seguiria também não, em proveito de todos e segundo as vontades variáveis dos interessados.

Num artigo publicado em Umanitá Nuova, a 22 de abril de 1930, salienta Malatesta, ao criticar a visão determinista de Kautsky quanto à revolução: acreditamos que a revolução é um ato de vontade, vontade dos indivíduos, das massas, pensamos que ela exige para ter sucesso certas condições objetivas, mas que não acontece fatalmente por fatores econômicos e políticos. Sem propriedade e sem Estado, diz ele, a revolução seguirá as linhas traçadas pelas necessidades práticas e que a livre experimentação modificará pouco a pouco.

Acentua Malatesta o papel das minorias na emergência de uma nova idéia, nova instituição, todo progresso.

Declara enfaticamente que a pretensão do anarquismo é a elevação de todos os homens ao nível de forças conscientes da vida social. Porém prevê dificuldades no caminho, argumentando que para conseguir tal finalidade é necessário acabar com a violência que ressua esses meios aos trabalhadores e isso só pode ser feito pela violência, não por uma razão de princípio, mas porque é impossível de outra maneira.

Esclarece com toda nitidez que anarquismo não significa a pregação de um golpe para tomar o poder, mas o contrário, suscitar todas as forças populares para que a era da livre evolução comece, conclamando todos os partidos, todas as organizações operárias, para galvanizar a massa, dividida entre diversas organizações.

Critica aqueles que pretendem esperar que as massas se tornem anarquistas para depois fazer a revolução, convencido está que elas nunca se tornarão, ao persistirem as instituições que as mantêm escravas. Apela a uma estratégia de aproximação com as massas, aceitando-as como são para fazê-las avançar o mais longe possível. Tal trabalho, diz ele, nada tem a ver com aqueles que pregam no deserto para pura satisfação de seu orgulho intelectual.

A revolução como concebem os anarquistas é a menos violenta possível, ela procura interromper toda violência tão logo cesse a necessidade de se opor à força material do Estado e da burguesia. Os anarquistas só admitem a violência como legítima defesa. Pois, segundo Malatesta, o ideal serve para frear, corrigir e destruir este espírito de violência que a revolução como ato material teria a tendência de desenvolver.

Malatesta não incide no basismo segundo o qual “as massas têm sempre razão” ou “a voz do povo é a voz de Deus”, ressalta que não pretende segui-las em seus humores mutáveis, o anarquismo significa um programa acumprir, porém, como o objetivo é libertar e não dominar, trata de habituar as massas à livre iniciativa e à livre ação. Para ele, é a liberdade que educa para a liberdade e para a solidariedade.

Uma sociedade comunista ou anarquista deve nascer do livre acordo, senão será uma sociedade de caserna com igualdade formal e aparente no meio da desigualdade, com base na regra: para cada um o que ele quiser, o que supõe a abundância e o amor. O espírito de fraternidade, a aptidão a fazer concessões, a tolerarse e suportar-se, não se criam, menos ainda se desenvolvem por meio de leis e graças a policiais. Para ser realmente a comunidade das almas, explicita Malatesta, e não um retorno à escravidão, o comunismo ou o anarquismo deve nascer localmente, entre grupos com afinidades, graças à experiência, das vantagens materiais que ele permite, à segurança que ele inspira, o fato de satisfazer os sentimentos de sociabilidade e de cordialidade que estão na alma de todo ser humano e que se manifestam e se desenvolvem tão logo cresce a necessidade de lutar contra os outros para assegurar a própria vida e a das pessoas que lhe são caras. Em suma, o comunismo ou o anarquismo, prega Malatesta, deve estar nos corações antes de estar nas coisas.

É como uma família ou um grupo de companheiros que vivem juntos, esclarece Malatesta. Vive-se como comunista ou anarquista se se ama e na exata proporção em que se ama. Somente se houver acordo e amor entre os membros do grupo, se dará mais àquele que é mais fraco, àquele que mais necessita e todos ficam felizes e orgulhosos de contribuírem para o bem comum.

Malatesta reage contra aqueles que defendem o ponto de vista segundo o qual no momento da revolução deve-se esquecer a doutrina, à medida que doutrina significa programa, esquecê-lo no momento de realizá-lo é colocar-se a serviço daquele que conseguiu dominar e explorar a revolução.

Para ele, o socialismo ou anarquismo é uma questão de consciência e vontade. Quando os trabalhadores não suportam mais seu estado de inferioridade moral e material, quando os homens de coração se revoltarem contra um mundo de infâmias e sofrimentos inúteis, quando um número suficiente quiser acabar com isso, aí então o socialismo existirá. Do contrário, não. Pois, os grupos e indivíduos agem à medida que se desenvolve neles o estado de espírito necessário à ação, o espírito de iniciativa, e desaparece a tendência a esperar ordens e ação dos chefes, que se denomina, errônea e habitualmente, espírito de disciplina.

A respeito do conceito de disciplina — esclarece Malatesta — constitui ele a grande palavra que serve para paralisar a vontade dos trabalhadores conscientes.

Não deve ser uma disciplina bovina, devoção cega aos chefes, uma obediência àquele que sempre diz para não se mexer. A disciplina revolucionária significa: coerência com as idéias aceitas, fidelidade aos engajamentos assumidos, sentir-se obrigado a participar com os companheiros de luta, o trabalho e os riscos. Somente os velhos conspiradores mazzianos concebiam uma “revolução disciplinada”, desconhecida para a maioria e que sequer tinha início. Havia um Comitê Central que nomeava os subcomitês, elaboravam-se os planos, enviavam-se as ordens e, geralmente, não se obtinha sucesso.

Malatesta preconizava a união das esquerdas, do proletariado contra a burguesia e o governo, em artigo publicado em 22 de abril de 1930. Reafirma em artigo publicado na revista Volontá, a 1 de maio de 1920, e salienta, entre os deveres, ser o mais importante a solidariedade mais ativa com as outras forças revolu-cionárias, qualquer que seja sua orientação, para defender a revolução de todas as tentativas de reação interna ou vinda do exterior. Explica que a liberdade não significa isolamento.

Grande parte da atividade jornalística de Malatesta é dedicada à crítica aos erros e omissões da II Internacional e do Partido Socialista italiano e sua política reformista.

Assim, critica ele o que chama “os socialistas democratas” que pretendem conquistar o Poder Público e aumentar sua ação estatal via tributação para converter a riqueza privada em pública. Daí prometem um governo com seus fiscais, coletores, oficiais de justiça, policiais, administradores, corpo legislativo para fazer leis e ministros para executá-las. O Estado Socialista representaria a todos, todos os poderes sairiam do povo. Denada vale dizer que não havendo classes sociais o governo representará a coletividade. Malatesta aproveita a ocasião para desenvolver uma engenhosa teoria, segundo a qual os governantes constituem uma classe e se desenvolve entre eles uma solidariedade mais poderosa que a existente entre as classes operárias. Argumenta ele, é exato dizer que hoje o governo é escravo da burguesia, mas isso tem mais a ver com o fato de que seus membros são burgueses do que com fato de serem governo.

Propriedade e governo operam juntos; ao abolir o governo sem abolir a propriedade, os proprietários reconstruirão o governo. Quem está no governo quer lá permanecer e fazer triunfar sua vontade. “O governo”, salienta Malatesta, “engendra em torno dele uma classe que lhe deve seus privilégios e que está interessada que ele permaneça no poder”. Os partidos do governo são no plano político o que as classes proprietárias são no plano econômico.

Adverte Malatesta: “quem fala em abolir o governo e substituir a administração dos homens pela administração sobre as coisas, esquece que quem tem a administração das coisas tem domínio sobre os homens”.

O princípio do governo que conservam — os socialistas — e reforçam destruiria o princípio de igualdade social e abriria uma nova era de luta de classes, salienta Malatesta.

Num artigo publicado a 16 de maio de 1926, no jornal Il Pensiero, Malatesta já apontava o fato de o Partido Socialista italiano ir a reboque da burguesia, acentuando: “os representantes mais distintos do socialismo democrático italiano nos repetem continuamente que seria vantajoso para os proletários italianos serem governados por uma burguesia rica, culta e moderna”. Parece estarmos ouvindo o discurso de certa “esquerda” no Brasil de hoje.

Parlamento

Um dos temas fundamentais dos escritos de Malatesta é o tema do Parlamento, o sentido da luta parlamentar, como obstáculo à formação da consciência social do trabalhador, como “fábrica de ilusões”. Ao Parlamento liga-se o eleitoralismo, que acaba dominando nos partidos acima de qualquer ideologia ou propaganda política.

O Parlamento é parte integrante de um regime político individualista onde vigora a chamada “soberania popular”, onde a lei é feita por quem o povo elegeu, teoricamente ela representa a vontade de maioria, na prática “ela é o resultado de uma série de transformações e de ficções que falsificam a expressão autêntica da vontade popular”, diz Malatesta.

Num artigo de 16 de maio de 1906, Malatesta critica todos quantos cultivam o “fetichismo parlamentar”, isto é, enchem o povo de ilusões de que tem amigos no Parlamento; isso leva-o a esperar que algo ocorra. Por outro lado, muitos socialistas parlamentares em seus discursos eleitorais acentuam o Parlamento não servir para nada, daí a pergunta de Malatesta: “por que eles se esforçam para fazer com que ele sirva para alguma coisa”?

Critica ele aqueles que são revolucionários na campanha eleitoral, e após as eleições voltam ao regaço conservador após “fazerem discursos eleitorais que pareciam apelo às armas”. Manifesta-se contra a autoridade à medida que é a violência do pequeno número contra o grande número, também seria contra a autoridade se ela fosse conforme “a utopia democrática, a violência da maioria sobre a minoria”.

Salienta ele que o Parlamento acaba por criar uma categoria de “político” com seus interesses específicos, geralmente opostos ao do povo. O reformismo socialista liga-se à ação parlamentar. O caminho do reformismo é o da legalidade, é tranqüilo, mas cheio de armadilhas.

Toda vez que alguns se propõem a conquistar os poderes públicos, indo ao Parlamento e aos Conselhos Municipais e provinciais, moderam cada vez mais seu programa, colocando-se ao abrigo de relações de colaboração mais ou menos disfarçada com a classe burguesa, procurando proteção nas áreas governamentais. Procuram reformar o regime sem tocar nas suas bases; podem suavizar o mal agudo, mas consolidam as causas do malestar social.

Na época da ocupação das fábricas em Turim, o Parlamento tudo sufocou, deixando os trabalhadores entregues ao fascismo. Enquanto isso, uma fração do Partido Socialista ofereceu-se para, aliada da burguesia, salvar suas instituições. Daí a proclamação de Malatesta: que os trabalhadores intimem os que dizem seus amigos a deixarem o Parlamento e lutarem ao seu lado. Na comédia parlamentar, as eleições são fraudadas pelo governo e pela classe capitalista, daí a grande maioria do Parlamento ser composta de burgueses e seus representantes; os proletários eleitos só servem para um simulacro de oposição. Se a grande maioria de eleitores é composta de assalariados, deveriam eles compor a maioria no Parlamento, a burguesia deixaria expropriar-se em obediência à maioria? Lembra Malatesta: o fascismo nada ensinou a essa gente? Esclarece: “desde o início do desvio parlamentarista nós lhes dissemos — aos socialistas — se algum dia fossem maioria parlamentar seriam expulsos aos pontapés no traseiro e que lhes seria necessário se submeter ou recorrer à insurreição, com a diferença de que o povo teria se tornado menos apto à insurreição devido à propaganda eleitoralista. Acreditam que a burguesia desarmaria seus fascistas, os mandaria para casa, deixaria os carabinieri (polícia) e os magistrados serviriam fielmente aos governantes socialistas?”

Conclui ele: a tática eleitoral e parlamentar acabou com o espírito revolucionário das massas e conduziu à abdicação do socialismo. Os socialistas podem chegar ao governo, porém, ocuparão postos subalternos se deles a burguesia precisar para conterem a onda popular. Poderiam fazer até uma boa obra administrativa, “seriam bons administradores e talvez liberais” – esclarece Malatesta – “socialistas, não”!

Julgava ele, em artigo no jornal Umanità Nuova, de agosto de 1922, enquanto partidos estiverem atacados pela peste do parlamentarismo, nunca farão revolução.

Isso não quer dizer que ele se posicione contra toda e qualquer reforma social. Esclarece Malatesta: “incitamos os trabalhadores a querer e a impor todas as melhorias possíveis e impossíveis e é por isso que gostaríamos que eles não se resignassem a viver em más condições hoje esperando o paraíso futuro. E se somos contra o reformismo, não é porque as melhorias parciais não nos interessam, mas porque acreditamos que o reformismo é um obstáculo não somente à revolução, mas até mesmo às reformas”6.

Diz ele, temos horror pela mentira democrática que, em nome do povo, oprime o povo no interesse de uma classe, “o parlamentarismo corrompeu e castrou os socialistas, corromperá e castrará os comunistas”7.

Após enunciar que uma insurreição implica preparo técnico, acentua: “como acreditar nisso quando se vê os que falam nisso preocupados com as eleições municipais, submeter-se a decretos governamentais sobre invalidez e seguro-velhice, enquanto dizem querer expropriar a burguesia”8?

Esclarece Malatesta, que combate o Partido Socialista quando ele exige e pretende disciplinar as massas para aceitarem uma nova tirania, quando quer que as massas sigam cegamente os “chefes”, da mesma maneira como combate as Câmaras do Trabalho e Cooperativas quando se tornam órgãos de conservação e colaboração com a burguesia. Porém, quando o Partido Socialista permanece no terreno revolucionário, quando as organizações operárias permanecem órgãos de luta contra o patronato e as cooperativas sob gestão direta dos trabalhadores, toda nossa simpatia e cooperação lhe são dadas9.

Em outro artigo publicado em Umanità Nuova a 1 de maio de 1920, Malatesta define sua posição a respeito da célebre proposta de “ditadura do proletariado” dos bolcheviques. Para ele, nada mais é do que o governo absoluto de um, ou melhor, dos chefes de um partido que impõem a todos o seu programa particular, quando não, seus interesses particulares. Ela se apresenta sempre como provisória, mas, como todo poder, tende a se perpetuar e a aumentar seu próprio poder e acaba, ou por provocar uma revolta, ou por consolidar um regime de opressão.

O comunismo imposto levaria a perder o apoio das massas e só poderia contar com a ação estéril e perniciosa da burocracia. Embora respeitasse a sinceridade e admirasse sua energia, Malatesta não deixava de notar que o conceito ditadura do proletariado significa ditadura de todos, o que é impossível, o proletariado fica na posição de povo nos regimes liberais, serve para esconder as coisas. Na realidade é uma ditadura de chefes de um partido, com sua força armada, que poderá ser empregada contra os trabalhadores para consolidar interessesde uma nova classe.

Razão pela qual escrevia de Londres a 30 de julho de 1919: “Lênin, Trotsky e companhia certamente são revolucionários sinceros em relação a seu modo de compreender a revolução e não a trairão; mas preparam os quadros estatais que servirão àqueles que, em seguida, virão se aproveitar da revolução e matá-la. Serão os primeiros a serem vítimas de seu método e a revolução cairá com eles, temo por isso. É a história que se repete: mutatis mutantis, é a ditadura de Robespierre que levou-o ao cadafalso e preparou o caminho para Napoleão”.

Temia Malatesta que o poder nascido da revolução utilizado contra os reacionários e inimigos externos, após serem vencidos, servisse para se impor às massas, deter a revolução e defender novos privilégios. Mostra Malatesta, em artigo de 1 de maio de 1920 em Umanità Nuova, “quando o governo ditatorial for formado e os órgãos estatais criados, os socialistas sinceros que não desejariam chegar aonde este fato tenderá necessariamente a conduzi-los, serão as primeiras vítimas de seu sistema”.

Lênin e Trotsky reprimiram Makhno e Cronstadt, Stalin liquidou o último de seus adeptos. Lênin morrera a tempo.

Acentua Malatesta que a revolução não teme a reação daqueles que foram expropriados de sua propriedade e perderam os meios de ataque, temível é a reação daqueles que aspiram à ditadura.

Malatesta critica a polaridade estabelecida na norma: uns trabalham, outros os defendem, assim foram justificados exército, polícia, e quaisquer instituições parasitárias e opressivas. Propõe o término da dualidade, um maneja a pá e outro a espada, pois o que tem a espada explora o que tem a pá. Conclui ele, “nós não desejamos este tipo de comunismo, aquele que trabalha deve e pode se defender, se precisar contratar um protetor permanecerá escravo”10.

Polemizando com um defensor do bolchevismo, em artigo do Umanità Nuova de 18 de julho de 1920, argumenta Malatesta que Maxim, o defensor do leninismo, deveria mostrar por que as dificuldades seriam resolvidas por uma ditadura e não pela ação direta dos trabalhadores; prossegue: “ele deveria nos demonstrar como e por que os homens mais ativos e inteligentes seriam mais úteis estando no governo onde desperdiçariam o melhor de seus esforços para se manter no poder, ao invés de estar no meio das massas, trabalhando, incitando os outros a trabalhar e tomando todo tipo de iniciativas benéficas”. Conclui salientando que “este modo de pensar de ‘Maxim’ é o de todos reacionários e conservadores: o medo e o desprezo da massa e a fé na virtude taumatúrgica (milagrosa) que a ‘autoridade’ confere a quem dela está investido. Ele é um adepto fervoroso do chicote, mas pelo menos, nos diz que deve ter este chicote na mão”.

No fundo da questão teórica da ditadura há sempre esta questão prática: quem deve ser o ditador? O movimento operário fica premido entre essa corrente autoritária e a eleitoralista reformista que esquece os fins, “uma longa experiência nos ensinou que os interesses eleitorais levam sempre a melhor sobre todas as razões doutrinárias concernentes ao futuro”11.

A respeito da formação da III Internacional, pergunta ele: seu Programa será discutido, proposto e formulado num Congresso? Como será convocado? Os delegados de todas organizações operárias e partidos subversivos poderão participar com direitos iguais?

Critica tanto a idéia da formação de uma Internacional Comunista como uma Socialista ou Anarquista, pois elas visariam um programa particular e não a Internacional dos Trabalhadores. Essa, sim, deveria unir todos os trabalhadores, sejam eles anarquistas, socialistas, sindicalistas, respeitando os métodos de luta de cada um, preservando a identidade de fins, uma Internacional assim se constituiria em alavanca da luta social.

Em artigo publicado no Umanità Nuova a 2 de setembro de 1920, salienta ele a importância da URSS como “farol”, uma esperança, contínua fonte de inspiração para o proletariado mundial, criticando o regime de concessões mútuas da diplomacia soviética, que poderá despedaçar o ímpeto revolucionário abrindo o caminho à “restauração”.

Critica ele a volta da diplomacia secreta na URSS, resultando que “uma coexistência do sistema comunista e do sistema capitalista seria eventualmente tentada e a revolução seria finalmente assassinada”. Em outro artigo publicado a 4 de maio de 1922, Malatesta mostra que os anarquistas sempre lutaram pelo poder aos sovietes; assim, Emma Goldman e Alexandre Berkman, anarquistas norte-americanos, gostariam de fazer tudo que pudesse ser útil aos sovietes.

Porém, o governo russo dá mais importância à sua manutenção no poder do que à revolução e joga os anarquistas na prisão, fuzilando-os.

Malatesta encontra-se em Spezia (Itália) com um enviado do governo russo, Sandomirsky, atestando que “ele reconheceu como verdadeiras todas as acusações que lhe apresentamos contra o governo de Lênin: supressão total de toda liberdade de imprensa, reunião, associação, greve, as falsas acusações de banditismo lançadas aos anarquistas que eles queriam suprimir; a onipotência da polícia secreta, as prisões, as torturas, deportações assassinas, execuções sumárias de anarquistas, socialistas e comunistas dissidentes”.

A isso nada é preciso acrescentar.

Finaliza Malatesta, analisando criticamente a “justiça revolucionária” do Estado Operário a serviço de um governo que, para permanecer no poder e impedir que a revolução se desenvolva, emprega meios de repressão iguais aos utilizados pelo antigo regime militar. Os tribunais militares, a pretexto de defender a “revolução” como os outros defensores da “ordem”, dirigem seus golpes contra os revolucionários que eram uma ameaça para o poder recentemente estabelecido.

Diz o partido dominante na URSS que representa uma classe, quando a revolução fôra feita para abolir as classes.

Dizem que representam o proletariado fabril, mesmo assim “os conscientes”, mas só os inscritos no PC e assim só a camarilha governante. Estes querem ter o direito de vida e morte e dispor do destino de um povo que fez a mais gloriosa das revoluções, exclama Malatesta.

Notas

1 Texto originalmente publicado como introdução ao livro Anarquistas, Socialistas e Comunistas; uma coletânea de diversos artigos de Errico Malatesta, publicado pela Ed. Cortez, 1989. Tradução de Plínio A. Coêlho. Edição esgotada.

2 Luigi Fabbri. Malatesta. Buenos Aires, Editorial Americalee, 1945, p. 192.

3 Errico Malatesta. A Anarquia. Brasília, Novos Tempos, 1988, p. 71. [Reeditado na Coleção Escritos Anarquistas, vol.

4 Idem, pp. 75-6.

5 Ibidem, p. 77.

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